Eu era assim
Hoje a bagunça do quarto me irritou. Cadernos fora do lugar, a arrumação da mesa confusa. Remédios, canetas, fones de ouvido, exames médicos que deveriam estar dentro de uma pasta para utilizar na próxima declaração do imposto de renda. Enfim, um caos. Até mesmo ligar o notebook foi um desafio, eu não encontrava o carregador.
Parte da culpa por essa desorganização, eu assumo. Sim, há um pouco de desleixo pessoal em permitir que as coisas estejam do jeito que estão. Eu sou bem organizado a maior parte do meu tempo. Porém permito, de forma inconsciente, que os outros façam alterações no meu ambiente. Tirando uma coisa aqui, outra ali. E quando percebo, há muito do que nunca remexi por todos os lados. Essa política da boa vizinhança cobra um preço.
Nem sempre fui assim. Aliás, eu não era assim.
Lembro que durante minha adolescência-começo da vida adulta eu procurei ter uma organização melhor dos meus afazeres. Minhas tarefas, atividades, tinham hora para começar e terminar. Cada coisa, o seu devido lugar. Até mesmo minhas amizades, ou algum relacionamento, tinha espaço na estante da minha organização.
Hoje me recordo desse meu Eu bastante intransigente, e até pedante. É claro que me permito a reflexão que esse Eu era mais novo, e o mundo era (e sempre foi) uma eterna descoberta. Muito do que fiz naquela época eram experiências, ou o meu primeiro momento de “colocar o pé na água”. Então revejo minhas atitudes como de uma pessoa bastante imatura e com muita vontade de ter o mínimo de organização na vida. Ecos de algo que me incomodava? Certamente.
E foi então que escutei aquela palavra pela primeira vez. O rótulo que foi estampado não por mim, e vindo de um lugar muito improvável. Estranho como hoje percebo melhor quanto eu deixei de viver por causa desse evento. Uma simples bobagem dita ao acaso de alguém que não parecia muito interessado em me escutar de fato. “Você é muito metódico”. As palavras tem poder, alguém pode dizer, e sim, as palavras possuem.
Metódico. Eu me encaixava em algum lugar. Eu era “quadrado”. Havia um espaço determinado por linhas imaginárias que não me permitiam ser ou existir para além daqueles limites. Foram anos e anos com aquilo subindo e descendo pela minha garganta. Incomodando, doendo, queimando, me alterando.
Aceitei um rótulo de alguém que não me conhecia como uma sentença. E por anos quis me afastar desse ou daquele comportamento para não me permitir, eu mesmo, me julgar ou me enxergar metódico. Foram anos evitando me organizar demais, apenas para não ouvir novamente daquela pessoa, pois é, essa palavra que me machucou e me incomodou tanto.
Foram anos para perceber que uma simples palavra pode doer, afastar, tirar a fome, tirar o sono ou mesmo a vontade de sair da cama. Foram anos com essa palavra presa dentro de mim, sem nunca entender bem a razão de carregar esse juízo por tanto tempo. Foram anos e anos.
Agarrado em velhas convicções. Preso em meus próprios julgamentos, ou acorrentado aos alheios a mim. Réu dos meus próprios pensamentos, me culpando por falsas verdades proferidas por outros.
Por anos e anos. Eu era (eu fui) assim.
Marcel
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