Eu e minhas idas e vindas
Mais um dia dirigindo na minha cidade natal. Mais idas e vindas nessas ruas, e seus buracos, que conheço como o caminho da cama ao banheiro em uma visita noturna - e sem precisar abrir os olhos.
Mais um semáforo. Mais uma espera. Em cada condutor um sentimento de urgência. Há pressa para deixar os filhos na escola, para chegar ao trabalho ou outro destino. Buzinas, motoristas acelerando impacientes, pedestres pacientes esperando a vez de atravessar a via. Espaço disputado centímetro a centímetro.
Três motoqueiros para cada carro. Dois ladeiam o meu carro e mais um fica posicionado atrás se decidindo por qual lado irá me ultrapassar. Uma arrumada no vidro retrovisor. Um quarto motoqueiro brota na esquerda e se posiciona à frente do carro com outros dois. Um olha para o outro e sincronizadamente todos levantam suas viseiras. Começa a se desenrolar um papo animado. Não consigo ouvir. Um deles está com a blusa do Vasco e carrega uma mochila de entregador. O outro está fardado para o trabalho. O terceiro está de blusa regata e ignora o frio que me faz permanecer com os vidros fechados e em uma luta particular com o aquecedor que não cede aos meus comandos.
Verde. Avanço mais alguns metros até o próximo semáforo. Antes de parar o carro, um motorista em uma caminhonete imponente (e impaciente) de cor prata faz uma ultrapassagem pela contramão e se interpõem entre mim e os motoqueiros. É sempre assim. A lei do mais forte, ou do carro maior. E quanto maior o carro, pondero, menor o cérebro e a vontade de esperar pacientemente pela sua vez. É a lei do mais forte, e como carro maior, ele faz questão de imprimir sua força e presença com manobras não permitidas, colocando o carro à frente dos outros, não respeitando semáforos, pedestres, faixas, ou qualquer regra de convivência pacífica em sociedade.
Não há como medir forças. Minha buzina só dará uma satisfação pessoal ao mau condutor, que apelido carinhosamente de Todo-Poderoso. Nessas horas o certo é preservar a sanidade e abraçar minha paz interior. Coloco uma música, a letra me agrada, minha cabeça vagueia. O trânsito some da frente dos meus olhos e me recordo de algo bom. Sorrio e mais uma vez acelero seguindo o fluxo, mais uns metros e outro semáforo.
Dessa vez a caminhonete prata é que foi “cortada” por outro veículo. Um carro menor, um atrevido Ford Fiesta prata o atravessou. Veja só: O motorista da caminhonete se sente ultrajado. Como pode ele, Todo-Poderoso, ser desafiado em seus domínios? Aquilo vai ficar assim? Minhas percepções estão aguçadas, outros motoristas começam a se ajeitar nos seus lugares para acompanhar o desenrolar. No meu íntimo desejei ter um balde de pipoca à mão e um refrigerante gelado.
O motorista da caminhonete, indignado, desce e bate no vidro do carro à sua frente. O Fiesta, indigno, possui vidro fumê, não é possível ver o seu interior. Todo-Poderoso continua a bater e esbravejar, até que a porta do carro se abre. Primeiro um rosto bonito e feminino sai do carro com uma expressão fechada (e perigosa) que todo homem que já foi casado por mais de 12 horas conhece muito bem. Logo em seguida, o corpo inteiro da mulher está em pé e ao lado do carro. TP rapidamente muda o tom da fala, e da pele. Visivelmente empalideceu ao perceber que a motorista era uma policial militar completamente fardada.
Ela rapidamente assume o controle da situação e… o semáforo abre passagem novamente. Todos se espremem ao tentar desviar dos dois carros parados com a policial passando um sabão para o (agora) não-tão-Todo-Poderoso e seguimos nossos caminhos. As disputas de poder por espaço vão perdendo lugar nas ondas sonoras e a batida da música me embala durante o trajeto. Cercado por carros, espremido no meio de vários motoristas, me sinto solitário e consigo escutar o som da minha própria respiração em mais uma parada, um cruzamento com mais um semáforo. O derradeiro, espero eu.
Enfim, o destino final. Parei o carro e desliguei o motor. Uma rápida olhada no espelho, mergulho em alguns pensamentos e indagações. A quem contar essas minhas divagações? A quem expor o misto de emoções e vivências que presenciei? Às vezes me entendo tão deslocado nesse mundo que só tem pressa em chegar e chegar a sabe-se lá aonde. Essa sensação me corrói alguns instantes. Suspiro.
Há muito anos, aprendi que o importante é a jornada, e o que aprendemos com ela. Não me permito mais pensar em chegar aonde quer que seja.
Nem mesmo no caminho de volta.
Marcel
Comentários
Postar um comentário