Distante do real
Esse é um episódio que lembro bem. Em algum momento, o meu velho eu, em um corpo mais novo, precisou se dirigir ao caixa eletrônico. A melhor opção próxima era o supermercado. Havia dois aparelhos, cada um com sua fila. Um tormento. Apesar de, já naquela época, e por influência de um livro de auto-ajuda, eu apreciava esses momentos para me bloquear do mau humor dos outros que odiavam esperar. Coisa que levo comigo até os dias de hoje.
Nesse dia em particular, não recordo da fila se estender além do suportável. Tudo transcorria bem. Lembro de sacar o meu dinheiro e pegar um extrato impresso que precisava conferir. Nesse momento, me afastei para o lado e um senhor, no alto dos seus mais de 70 anos de vivência, veio ao meu ouvido soprar um impaciente: “Já terminou?”
Lembro de olhar para ele surpreso por estar afastado do caixa eletrônico e pela falta de educação, paciência ou que quer que seja que não se espera de alguém com cabelos brancos e movimentos comedidos. Raiva. Fiquei mastigando aquele insulto e percorri os corredores do mercado planejando uma frase vingativa para devolver aquela raiva. Naquele tempo meu velho eu pensava: “não levar desaforo para casa”.
Há muita sabedoria nessas palavras. De fato, nem eu, nem ninguém, deve levar desaforos para casa, para o trabalho, para o hospital, para a cama, nem mesmo para o leito de morte. O sentido real é que se perdeu. Muitos, assim como eu um dia, entendem que essa frase é uma carta branca para o revanchismo. O velho “olho por olho, dente por dente”. Em algum purgatório, imagino, tem muita gente caolha e desdentada arrependida por ser tão literal na interpretação da lei de talião.
‘Não levar’ é no sentido de carregar. Levar nos ombros, nas lembranças, nas mãos nervosas, no orgulho ferido, nos olhos raivosos, aquelas palavras, aquelas ofensas como algo terminativo, uma sentença. ‘Não levar’ é deixar de lado. Abandonar. Entender aquela atitude, no meu caso, o resmungo de um velho ranzinza, como algo pequeno e que me afasta da grandeza de um crescimento como ser humano. Ceder ao impulso é sempre a resposta errada.
Já se passaram muitos anos. Eu sequer lembro da “fuça” daquele “agressor” do meu ego na fila do caixa eletrônico. Já não recordo a última vez que me imaginei em um diálogo com aquele senhor expondo minhas razões e vencendo triunfante com minhas palavras e, claro, devolvendo com juros o insulto para então enxergar nele o borbulhar de uma raiva profunda subir à superfície por ter o ego ferido.
Por anos acreditei que o passar dos anos sem reflexão eram a resposta para muitas questões existenciais. Impaciências? Iriam evaporar como mágica. Dúvidas mundanas? Sumir como a lembrança de um café da manhã solitário. Por muitos anos enxerguei nas pessoas mais velhas, com suas rugas e olhares julgadores, sabedoria e zelo. Enxerguei, (me) imaginei e projetei senhores e senhoras gentis, acostumadas com as mazelas da vida e mais próximas de uma humanidade muito falada e pouco exercida. Não são o ouro da terra, nem o sal do mar. Não são regra, nem exceção, são o que são. Nem melhores nem piores, apenas mais idosos. Pessoas que apenas estão mais tempo nessa estrada, e, cada um a seu jeito, absorveu e experimentou momentos da vida. Alguns cresceram, outros passaram. E ainda que possuam cabelos brancos, enganoso é atribuir às suas características físicas uma sabedoria exemplar. Irretocável.
Nada é mais distante do real. E essa é a lição que carrego desse episódio.
Marcel
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