Histórias sem fim #2
Traçar palavras
Traçar palavras sobre a própria vida, deve ser, das tarefas, a mais ingrata já atribuída aos escritores. Olhar para dentro de si, revirar o passado, reviver amores, jogar sal em feridas. Esse momento foi, para minha pessoa, determinado por forças ainda bem além do que consigo compreender.
Bom, vamos às apresentações. Sou, de nascimento, José Alejandro Quiqueremos, ou Quique como Aurélio (meu amigo-irmão) gostava de me apresentar. Filho do antigo Capitão do Mar, Euzébio Sales Quiqueremos e da sua senhora esposa, minha mãe, Izadora Libertá. Filho dentre dezesseis irmãos legítimos, cinco bastardos, dois adotados e um cachorro (Bengala). Minha existência raiou sem grandes aspirações. Ser o quarto filho homem, de oito, em uma família tão numerosa requer adaptações. Enxoval reutilizado, berço dividido, e a incansável paciência de minha mãe.
Aliás, começarei falando dela. Descreveria minha amada mãe como delicada flor do campo. Uma beleza simples que se traduziu ao longo de sua vida em muitos gestos de amor. Mesmo aos 44 anos ao nascer do seu décimo sexto e último filho (meu irmão caçula Roque), ainda ostentava um sorriso caloroso de gratidão por mais um presente recebido dos céus.
Mulher de poucos luxos, era totalmente desapegada de bens materiais, exceto por seu terço, entalhado em madeira pelo próprio tio (Visconde Daniel) e também padre que a batizou aos 8 anos, e um armário de cozinha, dado por sua mãe, minha avó Úrsula, como presente de casamento com meu pai.
Mamãe gostava de cantar antigas canções de marinheiro, e além disso era contadora de histórias como poucas, com fama de cruzar a cidade. Muitos eram os dias em que nosso quarto (meu e de meus irmãos) ficava apinhado de gente, com vizinhos e conhecidos espreitando a janela vindos da rua e dos bairros vizinhos para auscultar fábulas sobre reis, cavaleiros e dragões.
Hoje, me revirando em meu túmulo, pergunto-me o que uma mulher daquela estirpe, tão apegada às coisas simples e aos filhos, se apaixonou por um homem como meu pai. Não que faltasse beleza em Eusébio. Pelo contrário. Euzébio Quiqueremos montado em seu cavalo, seria o protagonista de qualquer história de capa espada. Queixo reto e pronunciado, peito estufado, braços e pernas fortes, vasta cabeleira negra, olhos negros e profundos, altivez no olhar e falar.
Não continua...
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