Descompassado


Foi um dia comum. Tenho poucas recordações. Apenas o importante ficou guardado. Não lembro quando foi exatamente. Aquilo ficou em mim. Marcado com ferro quente em minhas lembranças.

Eu estava andando com meu pai pelo centro da cidade. Eu deveria ter perto dos meus 20 anos, ou menos. Foi um momento da minha vida em que eu estava muito próximo dele. Nos víamos todos os dias, e sempre que dava certo, almoçávamos juntos.


Estávamos a poucos passos de um caixa eletrônico. Uma mulher estava parada em frente e se virou por uns instantes. Lembro de suas feições, o lábio bonito, os cabelos castanhos, seu rosto se abrindo em um sorriso quando cruzou os olhos com meu pai.


Meu pai, nesse momento, mudou totalmente o semblante. Ele não era mais aquela pessoa séria que eu conhecia tão bem. Uma leveza atravessou o seu corpo. Sua voz mudou. Talvez seja a memória me passando a perna, mas recordo do meu pai endireitar a coluna para se mostrar mais alto para aquela “Rosa” que estava em nosso caminho.


Eles trocaram algumas palavras rápidas. Aquela flor arrancou um sorriso sincero do rosto do meu pai. E eu acompanhei com os olhos o momento em que ele delicadamente a beijou na mão no momento da despedida. Um gesto tão elegante e bonito que prometi para mim mesmo fazer isso um dia com alguém.


Meu pai então notou que eu estava ali, olhando para ele. Por um instante eu nem reconheci meu pai carrancudo e preocupado com o seu comércio. Ali eu olhava para um homem que por alguns instantes parecia não ter peso nenhum nos ombros, eu até poderia dizer que aquele era um homem (novamente) apaixonado.


Ele olhou para mim, ainda com aquele sorriso grudado no rosto, e falou ao meu ouvido: “Esse é um amor antigo…” Foram as únicas palavras que ele me dirigiu daquele momento tão único que eu presenciei.


O momento que eu percebi que aquele homem sério e duro também guardava memórias, lembranças, paixões e até mesmo um amor antigo que lhe fazia esquecer todas as preocupações do mundo pelo simples fato daquela "Rosa" existir.


O momento que eu vi o coração do meu pai bater descompassado por alguém...



Marcel

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