A Arrogância e o Orgulho das Palavras Raivosas

Perto de meio-dia. Almoço no quiosque do trabalho. Enquanto meu prato não chega, tento me distrair da fome observando o lago e procuro com meus olhos a linda garça que costuma esticar suas asas ali perto. Meus ouvidos, estranhamente, estão mais despertos que meu estômago. A mesa poucos metros ao lado tem quatro ocupantes. Um deles, uma mulher que acredito ser a mais nova do grupo, fala um pouco mais alto e no automático conta sua história com muita empolgação. A veia na testa da jovem (que acredito ser mais grossa que meu dedo mindinho) pulsa no ritmo das palavras exaltadas. Percebo o leve agitar das águas. Minhas percepções se perdem para além do horizonte. Meu estômago recita um verso em alguma língua morta. Morto estarei se não comer nos próximos 15 minutos.



A maré de palavras naquele horizonte de eventos

Eu perdi o começo (da história), perco o interesse do fim logo no início, e me encontro naquele meio, com palavras que se acham e saltam da boca cada vez mais altivas. A cada frase, a trama se aproxima do ponto de virada: Ela, a protagonista da situação, expondo suas razões triunfantes. Mostrando no argumento e nas atitudes, o quão senhora de si ela estava naquela situação. O como ela não só se percebeu naquele momento de injustiça, escárnio, com as costas na parede e de repente, com a força de suas palavras, elevou a voz e reverteu a maré dos acontecimentos, derramando sobre o outro a enxurrada de suas razões, e saiu de lá cheia de si, orgulhosa da própria raiva despejada, no alto do pódio de sua arrogância. O pódio em questão era a mesa ao qual a moça por fim subiu para proclamar em voz alta o que deve ser o desfecho daquela trama. Porém nesse momento minha atenção se desviu para algo mais importante.

Já consigo ver meu prato chegando até mim.

Temos orgulho
Temos orgulho de sermos raivosos
Temos orgulho em contar que fomos raivosos
Temos orgulho em contar para os colegas e amigos que não engolimos sapo
Temos orgulho em destratar o garçom por causa de uma mosca na sopa
Temos orgulho em dizer que passamos por cima dos outros
Temos orgulho em dizer "Eu me vinguei"
Temos o orgulho de colocar nossa voz acima dos outros para expôr nossas razões, para extravasar nossas frustrações
Temos orgulho em contar o quanto fomos ofendidos e retrucamos ofendendo
Temos orgulho em dizer que estamos certos, expondo o errado dos outros (nos outros) e passando como um trator sobre quem ou o quê consideramos a parte perdedora dessa história mentirosa que contamos e recontamos para vizinhos, colegas, amigos e nós mesmos.

Eu não sei o fim daquela história da mesa ao lado. E já não me interesso em ouvir uma palavra sequer. Com o canto dos olhos percebo que alguns clientes sacam seus celulares para filmar minha vizinha que agora desce da mesa enquanto uma funcionária da lanchonete de braços cruzados a encara com um olhar ameaçador. Nem mamãe, quando eu aprontava das minhas, me olhava daquele jeito. Senti um leve arrepio na alma, acredito ser fome. Meu prato com bife fumegante aterrisa com cheiros e enche minha boca d'água. Meus ouvidos, enfim, ficam surdos para o discurso inflamado da jovem que se gaba da própria raiva nas palavras e na atitudes diante sabe-se lá o quê que aconteceu.

Minha mente e meu paladar duelam pelo foco das minhas atenções. Eu torço pelo segundo.

Coloco a primeira colherada na boca
Temos orgulho
Sinto o gosto do primeiro pedaço do meu bife
Temos muito orgulho e somos muitos arrogantes
A fome é realmente o melhor dos temperos, concluo
Onde foi parar a humildade saborosa de outros tempos?


Marcel

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