Uma gota no oceano



Eu tenho uma amiga


E o mais interessante disso tudo, talvez ela nem saiba. Responder às suas mensagens carregadas de sarcasmo ácido é um dos momentos que compartilhamos juntos. Há algo de agressivo, sádico, agressivo (novamente) em seu tom. É o mais próximo de um relacionamento tóxico que possuo em minha vida adulta - recomendado pelos melhores terapeutas.


Aprendi a contornar essas respostas, respondendo. Porém não na mesma moeda, e sim oferecendo minha sincera e real amizade, com algum sarcasmo, afinal, tenho sangue nas veias.


Torço por ela. Sei que eu, e ela, compartilhamos um sofrimento em comum. Somos dois deslocados. Não estamos muito interessados nos modismos. A sociedade não perdoa. Aliás, não uso roupa de marca, e agora me veio a vaga lembrança de eu vê-la usando a mesma calça cargo de 10 anos atrás. Ser um observador da moda com desinteresse, e não um participante do desfile, pode ser também uma porta para a economia, alguns dão a isso o nome de mesquinharia. E talvez seja. 


Eu sempre a vejo indo ao trabalho. Outro momento que compartilhamos. Nossos trajetos coincidem. Mesmo percurso, mesmos horários. Um sol para cada um de nós. Eu de carro no trânsito sufocando com um ar-condicionado inflexível ao suor que percorre minha espinha, ela andando candidamente enquanto atravessa a avenida ignorando o semáforo aberto para os motoristas, que educadamente lhe estendem um tapete com os mais graciosos elogios que a língua portuguesa já concebeu. Coisa fina, aveludada.


Acredito que seu desprendimento ao atravessar corajosamente as ruas e avenidas seja ligado ao fato da mesma usar óculos escuros que não possuem grau. Sim, minha amiga usa uma bela armação aro de tartaruga (em segredo, eu sei) com lentes que mais parecem dois fundos de garrafa esverdeados. Alguém já me relatou que ela trabalha o dia inteiro “esmigalhando as vistas”. Sabe aquele movimento de foco que todos fazemos instintivamente ao tentar ler a bula de um remédio? É a isso que me refiro. Esse semblante dela é natural e não forçado. E até onde sei, permanece por toda jornada de trabalho.


Agora matei a charada! É esse! É esse o motivo dela não me cumprimentar quando passo de carro. Cruzo com ela todos os dias e sempre estendo o braço ou o polegar em sua direção. Fico sempre com o sentimento que cumprimentei uma porta. Até mesmo as capivaras do percurso são mais receptivas à minha pessoa.


Que conforto saber que sou ignorado pelo fato de ignorar algo que era bem óbvio aos meus olhos.


E quantas coisas não o são, não é mesmo?

Afinal, o que sabemos é uma gota de percepção do mundo, mas o que ignoramos, um oceano.



Marcel

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