Começa Assim

Solte a embreagem

Toda pessoa que aprendeu a dirigir carro manual já passou por essa experiência. Traumática, real e necessária.

Antes preciso explicar para algum leitor desavisado não nascido no século passado que ainda existem, juro, carros em que é necessário fazer a troca manual das marchas. Esses carros já foram guiados pelos egípcios, no Egito antigo, e por fenícios, em algum lugar chamado "Fenícia", ou algo parecido. 

Neles, o piloto-motorista deve ao acelerar, com o giro do motor elevado, fazer uma operação rápida e precisa de pedais. O pedal esquerdo deve ser afundado, ao mesmo tempo que o direito é retirado do acelerador, nesse momento, com a mão direta (caso você não dirija na Inglaterra, ou outro país de mão inglesa) faz-se o movimento com a manete de marchas para a próxima marcha, de preferência na sequência. De terceira para quarta, de quarta para quinta, e de quinta para o muro. 

Não existe carro popular com mais que seis marchas. Claro, me refiro as cinco em sequência mais a marcha ré. Ré de (movimento) retrógrado, palavra em desuso. Uma relíquia que algum povo conquistador esqueceu por aqui e não fez questão de retornar para buscar.

Do que falávamos? Sim, A experiência! A experiência que me refiro é o famigerado teste de direção. Afinal, o mundo não pode ser chamado de injusto se todos, ou pelo menos para aqueles que podem ser tidos como normais e não se deslocam de helicóptero ou jato privado, não fossemos submetidos a esse pesadelo nos anos iniciais da vida de um pretenso motorista.

Nesse teste o proto condutor deve demonstrar sua habilidade para coisas triviais como:  subir os vidros, e descê-los; ligar o ar-condicionado; reclamar do trânsito; estacionar no meio fio sem subir na calçada, ou se o fizer, saber negociar com o guarda de trânsito a cervejinha; ajustar o retrovisor enquanto retoca a maquiagem; ligar o pisca-alerta e causar pânico nos demais motoristas enquanto dá passagem para um casal de capivaras que atravessa a pista em plena hora do rush, e por aí vai.

A cultura pop já transformou esse momento em piada pronta para situações diversas. Havia uma cena muito boa de um filme, que nem era tão bom assim, que o examinador condicionava a aprovação no teste caso o protagonista não derramasse o seu café. O café, aliás, típico norte-americano: copo grande, cheio até a borda, de longe aparência de um caldo preto, de perto continua preto e o gosto (segundo fontes) tem gosto de caldo mesmo.

O protagonista, claro, não consegue sua habilitação. Não por causa do café, que o examinador tomou gole a gole durante o teste, mas sim porque já retornando ao pátio, atrapalhou-se nos pedais e pisou forte demais no freio. Fim da história. Com muito esforço, e alguma aspirina, lembrarei o nome desse filme mais tarde.

O Brasil, em particular, refinou a fórmula. Não só temos testes de direção ao volante, nós temos escolas para ensinar/traumatizar os candidatos a realizar esse exame. As Auto Escolas. Todas com nomes no mesmo formato, com raras exceções. Auto Escola complete com o nome do dono. Um dia desses cruzei com uma de nome bastante peculiar: Auto Escola Vovó Bathsheba. O instrutor dirigia um Puma azul que pertenceu a sua avó, proprietária-fundadora e também colega de classe de Noé quando este aprendia carpintaria em tempos remotos.



O curso em uma auto escola é como ter uma amostra grátis da câmara de tortura pelo qual todos irão passar. E neles até a realidade virtual entra em cena, com modelos computadorizados e cabines que simulam um veículo para em três dimensões lançar nosso candidato ao trânsito com 700 km de engarrafamento, motoqueiros e motobóis raspando e tirando tinta da lataria e, negociar com os flanelinhas para estacionar na sombra sem pagar mais caro por isso.

Chegamos então ao clímax. O teste da ladeira. Sim... Mais temido que o (parte importante do certame de direção) teste da baliza ou ainda, desligar o limpador de para-brisa com o carro em movimento. Nele, nossos nervos são colocados em tensão máxima. O instrutor, que agora coloca o capuz de carrasco, nos guia para alguma rua com uma subida íngreme (o cadafalso). Aqui deveremos estacionar o carro no ponto mais alto, e então ao seu sinal, parar o carro, e logo em seguida sair suavemente sem deixar engasgar. Deixando claro que o carro não pode engasgar, mas você, motorista, pode. Inclusive com a própria saliva de tensão.

Há algo de mágico nesse momento. A troca de pedais, como explicado anteriormente, exige do motorista alguma sensibilidade nos pés, ainda que o mesmo não tenha exercitado alguma em toda sua vida. O retirar gradual do pé da embreagem faz o carro vibrar, e é nesse momento que você deve se encher de coragem e acelerar. Sem engasgar, claro.

Fazendo uma analogia mais reflexiva. Curioso... O carro quando começa a vibrar é quase como a exigir uma resposta do motorista. Não seria assim também na vida?

Quando o seu corpo, suas emoções começarem a vibrar, perceba que é o momento ideal para "meter o pé no acelerador". E use o carro como exemplo, vá saindo aos poucos, devagar. Vai dar medo no começo, alguém (atrás, impaciente) vai te importunar. Vá no seu ritmo. Pisa devagar, começa. 

Toda mudança (real) começa assim.


Marcel

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